top of page

O DESENHO COMO MEDITAÇÃO

O OLHAR QUE CONTEMPLA

 

Dissertação apresentada por Susana Chasse em 2010 à Escola Superior de Design do IADE para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Design e Cultura Visual, ramo de especialização em Design Visual realizada sob a orientação científica do Doutor Eduardo Alberto Vieira de Meireles Côrte-Real, Professor da Escola Superior de Design do IADE e sob co-orientação do Mestre António Henrique Tavares e Castro.

 

IADE - Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing

Av. D. Carlos I, 4

1200-649 Lisboa, Portugal

www.iade.pt

Tese.pdf

 

 

 

 

ABSTRACT

 

O fascínio pela verdade do olhar sobre as coisas conduziu a autora à questão essencial: “Sendo o desenho a forma primordial de expressão, ferramenta materializadora da ideia e do universo que nos rodeia, por que razão existe, inexplicavelmente, um estigma de inaptidão acentuado em relação ao mesmo? ” A intenção da autora é demonstrar que o desenho, no seu estado essencial, é idêntico à meditação, e que, se for efectuado com essa postura, origina resultados bastante positivos. Através da pesquisa nas áreas da Meditação e do ensino do Desenho, bem como o testemunho da autora e de demonstrações filmadas, aquando da utilização deste método, por parte da autora e pela dos alunos, acompanhados por registos fotográficos dos mesmos, demonstra-se o resultado real e visível daquilo que foi vivenciado, e que constitui um passo em frente no ensino da disciplina e uma nova forma de aprendizagem, revelando uma abordagem ao desenho, mais natural, total e consciente.

 

 

 

CAPÍTULO I

 

CONTEMPLAÇÃO A MEDITAÇÃO DO OLHAR

 

 

"Através desse movimento o Génio penetra na interioridade do mundo e nele descobre a quietude, a claridade e a serenidade da realidade ideal. Assim, a contemplação da Arte levará o sujeito a interromper o ciclo de carências e satisfações que expressam o sofrimento do mundo."

                                                                                          (Schopenhauer, 2005)

 

 

Essa contemplação estética proporciona um conhecimento de certo modo mais directo e verdadeiro do que o conhecimento da ciência e do senso comum, pois que poderá constituir o conhecimento de uma representação não submetida ao princípio de razão, ou seja, nem à causalidade que se refere aos fenómenos, nem às leis da lógica que regem o conhecimento racional.

 

A palavra “contemplação” tem origem no vocábulo latino contemplatio, significando a acção de olhar atentamente (Torrinha, 1945, 196), correspondendo ao grego theoria, e ambos se referem a uma devoção total para revelar, clarificar, tornar evidente a natureza da realidade.

 

“A contemplação é a pura percepção, cujo “acesso só é permitido aos que possuem um coração puro e livre de segundas intenções.”

                                                                                             (Herrigel, 2007, 13)

 

O estado contemplativo numa sala, inicia-se com o professor. É imperativo que seja conhecedor dessa realidade para que possa transmitir a mensagem de uma forma verdadeira, podendo todo o seu ser emanar o que profere. A contemplação implica totalidade na observação. Para isso é necessário um silêncio absoluto na mente. É algo que só é possível ensinar se já existe em si. É uma zona e um estado que não se explica por palavras, simplesmente é.

 

 

 

“O que realmente acontece quando o ver e o desenhar se torna VER/ DESENHAR é que a consciência e a atenção tornam-se constantes e indivisíveis, tornam-se contemplação.”                                                                 

  (Franck, 1973:8)

 

Esse olhar consciente, permanente, ligado ao todo, é a razão pela qual associo e adopto o estar contemplativo na prática do desenho.

 

A aproximação ao ensino do uso da contemplação como base no método de aprendizagem já existe, embora em escala reduzida.

A Faculdade de Naropa, fundada em 1944 por Chögyam Trungpa Rinpoche, um estudioso, mestre nas artes e na meditação, e que se tornou amplamente reconhecido como um dos principais professores do budismo no Ocidente, criou uma universidade que combina estudos contemplativos com o estudo tradicional ocidental de disciplinas escolares e artísticas. O rigor dessas práticas de meditação disciplinada prepara a mente para processar a informação em maneiras novas e talvez inesperadas. A prática contemplativa “adestra” o poder de observação interior profundo.

Inseridas no currículo desta faculdade estão as práticas que incluem a Meditação Sentada, T'ai-chi Chuan, Aikido, Yoga, Pincelada Chinesa e Ikebana ou Arte Floral. A profundidade da introspecção e a concentração alcançadas através do envolvimento dos alunos na disciplina Práticas Contemplativas, em Naropa, altera em muito o panorama do ensino e da aprendizagem. (Naropa)

 

 

“Algumas vezes, a meditação está associada à obtenção de um estado mais elevado da mente, almejando à consecução de um estado de transe ou de absorção. Mas, neste caso, estamos a falar de um conceito de meditação completamente diferente: trata-se de um tipo de meditação incondicional, sem nenhum objecto ou ideia em mente. Na tradição de Shambhala, a meditação consiste simplesmente em treinar o nosso estado de ser, de maneira que a nossa mente e o nosso corpo possam estar sincronizados. Com a prática da meditação, podemos aprender a ser, sem ilusão, totalmente genuínos e vivos.”                                           

  (Trungpa, 2003: 37)

 

A contemplação vai para além daquilo que conhecemos como o acto de “ver” ou de “observar”.

 

O “ver” comum é rápido, e essa rapidez é muito útil para o dia-a-dia, mas para o desenho peca por redundar numa informação precária.

Já o “observar” torna-se interessante para o universo do desenho, mas talvez para um desenho mais avançado, onde já sabemos o que observar e, essencialmente, como observar. Trata-se de um olhar que usa a informação observada e o conhecimento prévio, ligando-os racionalmente e de um forma ordenada. Mas para que tal aconteça é forçoso saber utilizar essa informação devidamente, pois, de outra forma, corre-se o risco de “observar” através do filtro dos conceitos, deturpadores da realidade, na maior parte dos casos. A observação deverá manter o estado de alerta, para que o novo continue a surjir a todo o momento, independentemente da informação prévia adquirida.

 

Quando entramos no estado contemplative, tudo fica mais lento, sereno, desprovido de mente e nada está associado a qualquer tipo de conhecimento prévio, não existe intenção no olhar. É para mim, o meio mais próximo que encontro para materializar a meditação no desenho. Desenvolve a postura que pretendo, e, como tal, decidi reservar-lhe um capítulo, por entender que é de extrema importância revelar uma diferenciação consciente, na forma como olhamos. Na verdade, é precisamente isso que define todo o processo no desenho.  Como vêmos.

 

A contemplação, é um modo profundo de observer o que nos rodeia, uma vez que acorda em nós a qualidade empatica, tão importante para o ser humano, característica essa que nos destingue dos outros seres vivos, e que facilmente é desprezada e por conseguinte não alimenta e desenvolvida. A empatia com o todo que nos rodeia, só acontece se fôr desprovida de julgamento ou intenção. Trata-se de uma fusão integral, não só emocional, como também física e especialmente espiritual. O nosso espirito passa a não ter nome nem idade nem história, ele passa a ser aquile que contempla, só assim entende profundamente o que o rodeia. É como um liquido que assume a forma do recipiente e se solidifica ou evapora consoante o ambiente assim o exige. Ao contemplar, deixamos cair filtros e defesas, e assim podemos absorver toda a informação, não só a visual, como também a mais subtil, que vai para lá do visivél.

 

A subtileza que está diante de nós só é “vista” quando também nós somos e estamos subtis. Existe um silêncio e uma quietude que se instala para ver melhor. Um espaço para o qual é necessário tempo para o poder reconhecer e habitar. Esse talvez seja o grande tesouro da contemplação. Transporta-nos para uma zona pouco comum em nós mas essencial ao nosso equilibrio.

 

A contemplação desvenda-nos a história daquilo observamos, mas não de uma forma racional, mas sim intuitiva. As paisagens, os objectos, as pessoas, podem-nos por vezes parecer todas muito idênticas, ao ponto de quando as desenhamos, por vezes, caimos na armadilha de recorrer a formas gerais, como esferas e paralelepípedos, para resolver formas, que na realidade não são assim, mas que pela sua semelhança, usamo-las para rapidamente chegarmos ao final do desenho. Acontece que com desta forma “saltamos” passos essenciais na observação e no reconhecimento do objecto. Essa sucintabilidade retira-nos a capacidade de ver subtileza e a história daquilo que observamos. As marcas fazem com que um objecto passe a ser O objecto, ou uma pessoa passe a ser aquela pessoa, e não outra. Essa visão só se consegue, creio eu, através da contemplação. Onde existe um outro tempo, espaço e abertura para mergulharmos profundamente naquilo que contemplamos, ao ponto de nos tornarmos o que contemplamos. Nessa altura, quando tal acontece, passamos a dispor de toda a informação que nele se encontra contida.

 

Não só aquele que vê contempla. O invisual também tem essa capacidade. Por não ver, todos os seus outros sentidos estão em alerta máximo, ao ponto de visualizar na sua mente aquilo que todos os seus outros sentidos lhe transmitem. O tacto dá-lhe formas, texturas, pormenores e temperaturas. O olfacto o aroma intenso ou subtil, fresco ou quente. O paladar, o amargo, o ácido, o doce e o salgado e por fim a audição, concede-lhe o colorido da vibração dos sons, um leque imenso, que nos enuncia a intensidade e complexidade do que se dispõe diante de nós. A contemplação num invisual é uma ferramenta de sobrevivência. Sem ela a subtileza das coisas era perdida e tudo se tornava, generalizado, e isso traria perigo para a sua vida. O perigo não seria detectado, ou estaria sempre lá, dependeria da experiência que tivesse tido inicialmente, na primeira vez de contacto. A informação recebida tem que ter um cariz novo. Embora possa ser familiar tem que ser assimilado como se fosse a primeira vez e num estado de alerta.

 

Devemos utilizar os quatro sentidos como se fossêmos invisuais. A postura contemplativa estende-se a todos o nosso corpo, não só ao olhar. O olhar  acaba por ser potenciado por todos os outros sentidos. Portanto quando falo de contemplação, refiro-me a todos os sentidos presentes e em estado de alerta, potenciados e usados no seu expoente máximo. Todo o nosso corpo deverá vibrar no estado contemplativo.

 

O olhar deverá conseguir focar no objecto de interesse retirando não só a informação visual das formas como também a informação dada por todos os outros sentidos, e embora o foco seja um uníco, todo o corpo deverá continuar alerta para tudo o resto que o rodeia. O objecto não está desligado ou separado do todo, o observador também não, ambos fazem parte do mesmo, são o mesmo, e é quando se sente e vivencia esse estado que podemos apelida-lo de contemplação e por consequência natural, meditação.

Este é o estado que me interessa dirigir para o desenho, uma consciencia total, um alerta, um estado acordado de pura presence contemplativa.

 

 

 

 

bottom of page