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LANDS PROJECT

 

Existe uma palavra japonesa fortemente associada ao zen que contém em si a génese da sua própria caligrafia. Ensô, é possivelmente, o tema mais recorrente desta arte milenar, e, acredita-se que muito da personalidade do artista que a pratica se revela na execução deste símbolo.

Trata-se de um círculo, e, na verdade é esse o seu significado mais estrito. Contudo, na base da sua execução existe uma preparação, ou como constatou Herrigel, “um estado de genuíno desprendimento de si próprio, durante o qual o criador não pode estar presente”, excepto em espírito, “totalmente absorto no processo, esquecido de si, como se todos os seus gestos constituíssem um só acto”. O momento é, assim, de um enorme poder, e bem podia ser o chavão da tese de mestrado “Desenho como Meditação. O Olhar que Contempla”, desenvolvida  por Susana Chasse.

 

A prática do desenho, essa actividade transversal e inclusiva da actividade humana, possui esse saber antigo reunido no momento que teima em escapulir-se aos desatentos e incautos. Mas atravessa também a obra da autora, se é que não se assume como pura manifestação. Mesmo quando escondida e transfigurada nos protocolos da pintura, a marca do desenho emerge, portanto, como tónica dominante, estabelecendo a transição para essa modalidade numa viagem de avanços e recuos que questionam o limite e a condição das duas práticas artísticas.

Estruturador por natureza, o desenho reverte sobre si a aproximação primeira do mundo sensível e tradu-lo, no trabalho de Susana Chasse, em linhas reveladoras da energia, carga do que se observa, como se a autora nos quisesse dar a conhecer as entranhas do seu processo de trabalho, deixando-o a nu, cabendo ao espectador embaraçado a preocupação de o esconder com um qualquer acabamento. Serve a espontaneidade este propósito e assim se depura e extravasa o que para sempre se perderia no supérfluo.

 

Pode parecer, à partida, que a artista tenha posto o seu trabalho ao serviço de uma inventariação de cenários de cariz paisagístico. De facto, os fenómenos visuais inerentes, como os da cor, luz, espaço, afinal, a perspectiva aérea, vão ao encontro dos códigos tutelares da paisagem. Ao entendimento desse referente, a autora, em jeito de baralha e torna a dar, agudiza e complexifica o número de fenómenos possíveis de suceder em determinado contexto. Assistimos a uma construção renovada sobre o caos e a ruína das leis que regem a paisagem e seus valores; valoriza-se uma espécie de linha de horizonte (ela mesma ilusória no plano da realidade) como meio auxiliar da estratificação dos espaços e campos de cor; demora-se e faz-se refém do estatuto de esboço porque é aí que residem as qualidades incorruptíveis da espontaneidade e a frescura dos pequenos acidentes sucessivos em camadas que os legitimam e aprovam.

Nas palavras de Susana Chasse, Lands Project “é um convite para testemunhar transformações ténues, constantes e cíclicas. Um deambular da visão e da consciência mais subtil que existe em nós”. Propõe-se, portanto, tornar visível essa subtilidade, e para isso é necessário esbarrar com um olhar novo nas coisas que aqui se querem inomináveis, porque virgens da passividade do nome. Pois, o nome “é o dedo que aponta, mas não é a coisa em si; é o que estagna e impede a constante transformação”.

 

Posta de parte a possibilidade de a autora trabalhar d’après nature, resta sublinhar que não existe a preocupação da representação paisagística. Amiúde investimos a nossa atenção na recuperação da imagem tipo – essa espécie de âncora da lucidez; mas se o público assim julga é porque caiu irremediavelmente na armadilha que dá a ver de bandeja para, uma vez cativo, ser interpelado pela diversidade de operações inteligentes que só uma demanda incessante é capaz de produzir. É assim que em jeito de convite entramos nos seus projectos, esquissos de ambientes revoltos e os habitamos para deles sairmos revitalizados.

O acto criativo tem muitas das vezes uma pulsão escondida que alimenta a procura de algo que nos conforme, e não é de todo descabido que esta redefinição do mundo em torno de Susana Chasse lhe dê uma paz que tem em si o próprio fim, pois que, o génio, de acordo com Schopenhauer, autor recorrente da citada tese, “penetra na interioridade do mundo e nele descobre a quietude, a claridade e a serenidade da realidade ideal”.

 

Lands Project reúne, quer sob a forma de exposição (Lands Project, Galeria Sete, Coimbra em 2013 e Lands Project – Drawing The In Visible, Casa Museu Abel Salazar, Porto em 2014) quer como conjunto de trabalhos assim intitulados, a estranha tarefa de trabalhar então o mundo e a sua representação, refazendo-o a partir de um critério de insatisfação, para voltar a desfazer em direcção a uma mais completa abstracção, dando cada vez mais lugar a um vazio que tanto deve à contemplação e a uma geometria que já se anunciava em pequenos formatos, série a que a autora tem vindo a chamar Circular Motion e que pretende, para citar a mesma, perpetuar “movimentos circulares de constantes alterações onde a mudança não permite a estagnação. Tudo se transforma. Captar esses movimentos constante e invisíveis e plasmá-los. São frames que de outra forma seriam imperceptíveis ao olhar. Dir-se-ia que não existem. São impressões invisíveis, tornadas visíveis”.

Esta série de trabalhos de reduzida dimensão tem o condão de, ironicamente, nos oferecer um brinde, sob a forma de um vislumbre, um pormenor dessa realidade paralela. No entanto a dimensão presta-se ao registo breve e lúcido desse círculo, ou do que dele resta quando perpassado pela poética da artista, apresentando-se em fugazes e intrépidos movimentos em gatafunho que deixam adivinhar a velocidade com que foram executados. Nesta altura o trabalho parece mergulhar num universo mais denso onde moram a procura, a interrogação e a rasura. Mas há também, nesta série fragmentar, espaço para suaves formas modeladas pela cor, ou pela gradação da grafite, técnica a que tanto deve a obra de Chasse. A pluralidade de materiais envolvidos no processo, tais como, carvão mineral, cera, acrílico ou pastel de óleo, para só enumerar alguns, pode à partida correr o risco de ser excessivo e até incongruente. Mas, mais uma vez, é da própria feitura de uma obra e dos atritos, acidentes e ajustes que ela necessita para nascer.  Cada técnica tem a sua oportunidade, a sua tarefa, sem intromissão de outras, antes ajustando-se e ganhando mutuamente. Poderia dizer-se que a liberdade de uma acaba onde começa outra. Mais ainda, diria que todo o metier é assumidamente revelador da sua oficina, uma vez que os materiais não têm peias em aparecerem crus, ao invés de disfarçarem a sua natureza e fisicalidade. “Os materiais representativos da matéria subtil que se altera em constância, unem-se”, rebate a autora. E prossegue: “À partida a convivência entende-se impossível, mas pelas suas diferentes presenças, pesos e ânimos, ocupam espaços e ritmos específicos numa conjuntura de cores, valores e texturas desenhando o devir”. É assim que a grafite risca com a convicção de um material riscador. E, no entanto, perante esta frontalidade e frieza dos materiais deparámo-nos frente a um espectáculo que não deixa de comover e encontra eco nas subtilezas da cor impressionista, ou no traço vigoroso expressionista. De facto, existem até, momentos de uma aproximação ao processo fotográfico que resultam de uma qualquer operação do subconsciente, mais do que visualmente, na medida em que a cor e a concepção do espaço continuam, mesmo a este nível de abstracção, tão entrosados como quando resolvem as questões dos fenómenos reais.

 

O momento é de reflexão, senão de inflexão. Os grandes formatos, cada vez menos vinculados a um realismo, permitem ensaiar incertezas e proceder à triagem de soluções. Abrem-se espaços de silêncio imaculado que contrastam com zonas mais povoadas delimitadas rigorosamente. Pode a geometria conviver e ceder a sua ordem à rebeldia da expressão? Susana Chasse tem bem assimilado o saber do esquema compositivo e aperfeiçoa-o astutamente com criativos axiomas da sua plasticidade. Estrategicamente, a cor vai saindo de cena, restando apenas em jogo operações que o desenho conhece. Pintura e Desenho voltarão a reunir-se. Suspenso, o projecto de Susana Chasse, aguarda em silêncio a nova estocada. Afinal, Ensô simboliza também o vazio, o Universo. Ele é também a expressão do momento certo,  “um momento sem tempo, sem espaço, sem limites entre o que observa e o que é observado”. É por isso que este conjunto de trabalhos configura não só um método de trabalho, mas também de pensamento e modo de estar na vida.

 

Rui Tavares

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