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No Thing
 _não coisa [ connu sous le nom de peinture ] 

 

 

Não coisa, conhecida pelo nome de Pintura. Conversemos de coisas para alcançar as não coisas. A precipitada mente atribui à materialidade o título de coisa tal como o não-nome dá lugar à coisa também. O plano da existência física da coisa lega-lhe mobilidade e visibilidade provando a sua existência, dizendo que existe, logo é, mas essa confirmação resigna-se quando a não função, não subjugação, não utilidade e não reprodução lhe exige a independência de carácter da não coisa. O ser humano, corpo-matéria,  que se transporta do ponto A para B, a matéria, corpo, coisa, veste em si uma trindade omitida, não mensurável, sem forma, que lhe atribui uma outra extensão, a dimensão da não coisa. Ele existe, mas não é coisa. Ele reproduz-se no plano físico, mas não tem cópia. Não há cópia que o patenteie. Há uma trindade que lhe pertence que o arreda da coisa. Pensemos pintura igualmente segundo essa trindade, algo que contém três «alguéns», Corpo, Mente e Espírito [1x1x1=1]. Sem se comparar seja a que for, logo sem “a favor” ou “contra”, nem sendo a minha ou de outro, é Pintura.

 

[1]Corpo ou matéria que forma o suporte que lhe permite a mobilidade dentro do espaço-tempo que o objecto segura e que permite, pela sua aparência táctil, reconhecê-lo e enquadrá-lo num qualquer local. Matéria, o corpo que a admite, o suporte que aprova possibilidades inesgotáveis. Corpos médiuns, composições que se relatam na cor, secos riscados e molhados arrastados, ora diluídos, ora sólidos reais de abstracção. O corpo do que faz, a manufactura, o saber-fazer, não podem ser subestimados, é deste modo que a obra se substancia, mas também não pode ser motivo de interesse primeiro. Ela faculta-nos a oportunidade visual de assistir à sua correspondência e permite ao autor o poder de recriar, que é, passar para o plano material a criação de algo que se passou noutro lugar em si. O tempo altera a matéria – forma através da deterioração, mas a essência é intemporal. No plano invisível, não palpável, se algo existe dependente de uma insubstituível presença, mesmo física, o plano da coisa é alterado para uma não coisa. É como um Ser que É para além da sua matéria. Erige-se numa outra dimensão. 

 

[x1] A Mente, aquele que produz, cria o conceito que se reflecte no acto, antes, durante e após a acção onde se reúnem sentenças. O mental serviu-se do corpo cárneo do autor, da substância suporte e da plasticidade concreta. São serventes. Vigie-se a mente para atender e entender o seu papel. Uma mente desviada segue a personalidade e as emoções, não toca o nada que a obra exige para acontecer. É nesse instante que se arrisca perder tudo, quando a mente ludibria e ambiciona servir outros propósitos, pactos sociais, vaidades, receitas já provadas, entendimentos submetidos a terceiros e tristezas próprias, ao eu. Um isolado euque abandona a matriz e passa a “dar erro”, como uma espécie de vírus informático que corrompe ficheiros e se perde resumindo-se a uma versão subjugada de si. Passou de criador a criado. Não desprezemos também a mente que vê – o colectivoque lê a obra segundo a época e a culturae reflecte sobre a matéria exposta a seus olhos. Observa através de questões particulares ou sublimes. Também ele se pode perder nas suas teias de sentenciador que obedecem a outros. Na realidade é no corpo da mente que tudo se pode perder e tornar-se coisa. Ao nos deixarmos controlar apenas e só por ela, ficamos reduzidos a sobreviventes, escravos desligados da nossa imensurabilidade. Passamos a corpo que se transporta e move, falido em reconhecer a sua exclusividade, consumindo-se na tentativa de ser cópia de outro.

 

 

[x1]Espírito, essa eternidade que reside dentro do nós-matéria. O Espírito da obra, pintura, princípio absoluto que possui três naturezas. O autor quando toca a substância com o seu corpo físico, coloca a mente ao serviço do nada e é a ética que faz revelar o génio da autenticidade e unicidade do espírito, renovando o momento ascenso. É a sua natureza ilimitada que serve de condutor ao alto. O que advém não torna a ocorrer, é um momento singular de existência que só pode emergir daquele que se colocou no acto da criação do momento, prescindindo de si. Nessa altura surge outra tríade – o ele, que se une ao eu(autor),e ao tu(Pintura). O eleé o que se sabe não nosso, para além do racional e do conhecimento próprio. É uma sabedoria que se encosta e nos trespassa, mas não nos pertence. O Cosmos revela-se sem palavras, são gestos inconscientes não controlados pelo eu, e é nessa conjuntura que surge a não coisa,ultrapassou a materialidade, a reprodução e serventia da coisa e exalta a sua existência plena. Falamos de Verdade, Regra Única, essa é a Essência contida no terceiro elemento da pintura, o Espírito. Quando tal acontece o espectador sabe. Sabe-o por vezes apenas por instinto. Não se explica o encontro com a obra, é-se arrebatado como o autor o foi, e relembra, também ele, a sua imensidão. Não há meio termo em Ser. Aprende-se a aceitar o momento, mas não se aprende a compreendê-lo. Quando os olhos do outro ele– público –, encontram o outro Ser – obra –, a não coisa, no imediato reconhecem-se ou então serão desconhecidos para sempre. Intelectualmente podem ver-se, mas não na sua alma. 

 

 

[=1] Trindade,que pertence ao código essencial das não coisas. É a matriz, divina proporção subliminar que forma tudo, natureza, fauna e flora, corpo Humano, ADN... expandindo-se até ao mais longínquo local. Rede gestativa do eterno das não coisas que estrutura a unidade permanente do Universo. Razão revelada em movimentos circulares até ao infinito, precedendo movimentos rectos, incluídos no rectângulo áureo, onde a beleza exalta a configuração abstracta do todo. Descobrir os princípios pelos quais os xamãs sempre se regeram. A estética existencial nascida da ética universal eterna. Não podemos reproduzir Pintura, podemos inclusive conferir-lhe um código QR como a qualquer outro produto, mas não a torna reproduzível por se representar no plano virtual quadriculado, remetendo à ideia de matriz. A música é talvez a não coisa que reproduzida não perde a essência. Porventura por se tratar de uma “cópia” etérea, que por não ser física, se retoma no plano imaterial. Mas outras cópias são impressões, no sentido efectivo e figurado. A impressão da Lua não é a Lua em si, a impressão de uma obra, pintura, não é a pintura em si, são duplicados. Falta-lhes trindade mais do que tridimensionalidade. Entes diferentes. O zelo na sua preservação e deslocação, aquele que pede luvas de algodão de imaculado branco, no sentido físico, mas acima de tudo conceptual, proferem que a sua candura deverá tocar bondosamente tudo aquilo que é imperecível, autêntico e único – as não coisas. Tendências, tecnologia e contemporaneidade não modificam a metafísica da fonte, não metamorfoseiam água, ar, fogo e terra, não adulteram a abstracção do amor, a fisicalidade do nascimento ou o despojo do corpo quando morre. As árvores permanecem de pé, crescem na vertical, respiram e mantêm identidade ímpar. Assim permanece a Pintura, de pé, singular, única. Se julgarem a Pintura morta, eu declaro ‘”as não coisasnunca morrem”.

 

 

Susana Chasse, 2018 

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